top of page

Medo, ignorância, ódio e preconceito: os projetos conservadores que chamam gênero de ideologia

O crescimento do conservadorismo na sociedade brasileira avança e tenta interferir nas políticas educacionais. Um levantamento das principais bancadas da Câmara dos Deputados mostra que os grupos mais influentes são representados por ruralistas, empresários e evangélicos, estes últimos ocupam 38% das cadeiras (198 deputados de um total de 513)¹.

Atualmente, tramitam no Congresso Nacional alguns Projetos de Lei conservadores que têm como objetivo interferir diretamente nos conteúdos abordados nas salas de aula, inspirados pelo movimento “Escola Sem Partido”. Este foi criado em 2004 com a finalidade de combater o que considera um processo de “doutrinação ideológica” dentro das escolas e universidades públicas brasileiras. O movimento parte de falsas hipóteses, como, por exemplo, a constatação da existência de uma doutrinação marxista nas escolas públicas (não foi feita nenhuma pesquisa sobre o fenômeno, por isso, a afirmação é falsa), e propõe uma escola complemente neutra e imparcial no que diz respeito a questões políticas e sociais, o que é impossível, pois não existe escola neutra, todas seguem determinadas tendências pedagógicas, ligadas a escolas de pensamentos e correntes específicas e, portanto, ideológicas.

Imagem retirada da página do Facebook que reúne professores que estão se mobilizando contra

o “Escola Sem Partido” e em defesa da autonomia docente.

As bancadas religiosas dão forte suporte à elaboração desses Projetos de Lei (PLs) e têm pressionado pela retirada do termo ‘gênero’ do Plano Nacional de Educação – PNE, de 2014. O PL 2731/2015, de autoria do deputado federal Eros Biondini (PTB-MG), altera a Lei que estabelece o PNE, vedando a discussão de gênero dentro das escolas. O PL defende a inclusão do seguinte trecho no artigo 2º do PNE:

“É proibida a utilização de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto”.

Afirmam que expressões como ‘orientação sexual’ e de ‘gênero’ "deturpariam os conceitos de homem e mulher", "destruindo o modelo tradicional de família". Sendo assim, buscam interferir nas políticas curriculares na tentativa de regular e orientar jovens dentro dos padrões que consideram moralmente “saudáveis”. A pressão dos grupos conservadores supõe que o silenciamento das temáticas sobre gênero e sexualidade na educação, afastariam as mesmas da escola.

É importante aqui definir rapidamente os termos para que não haja confusão. Então, vamos lá: sexo seria uma distinção baseada na biologia, nas diferenças das genitais, hormônios, genes, sistema nervoso, morfologia.

É importante aqui definir rapidamente os termos para que não haja confusão. Então, vamos lá: sexo seria uma distinção baseada na biologia, nas diferenças das genitais, hormônios, genes, sistema nervoso, morfologia. Gênero tem relação com a cultura, com o aprendizado vivido desde o nascimento, pois toda cultura determina, de algum modo, os papéis dos homens e das mulheres e realiza imposições de comportamento que não são naturais.  A identidade de gênero seria uma influência de convenções, estereótipos, e expectativas construídas no processo de socialização. A orientação sexual está relacionada ao desejo e à atração afetiva e erótica, e as pessoas podem ter orientações diversas, tais como, homossexuais, bissexuais, pansexuais, heterossexuais. Cisgêneros são as pessoas em que a identidade de gênero está em consonância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer,  transgêneros são as pessoas que demonstram algum grau de desconforto ou se comportem de maneira discordante do gênero em que foi enquadrado ao nascer. Podemos ver ao lado, um esquema explicativo simples.

Podemos ver ao lado, um esquema explicativo simples. Gênero tem relação com a cultura e com o aprendizado vivido desde o nascimento, pois toda cultura determina, de algum modo, os papéis dos homens e das mulheres e realiza imposições de comportamento (que não são naturais). A identidade de gênero seria uma influência de convenções, estereótipos, e expectativas construídas no processo de socialização. Cisgêneros são pessoas em que a identidade de gênero está em consonância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer, transgêneros são pessoas que demonstram algum grau de desconforto ou se comportam de maneira discordante do gênero em que foi enquadrado ao nascer. A orientação sexual está relacionada ao desejo e à atração afetiva e erótica, e as pessoas podem ter orientações diversas, tais como, homossexuais, bissexuais, pansexuais, heterossexuais.

As distinções (de gênero e orientação sexual) não teriam nenhum problema se não fossem criadas e reforçadas desigualdades entre as mesmas. Assim, para compreender as relações entre homens e mulheres na sociedade importa compreender o que foi construído socialmente sobre os sexos, isto é, a relação de poder entre os gêneros masculino e feminino. Gênero passa a ser um conceito fundamental para a compreensão da hierarquia entre homens e mulheres, do domínio do macho, considerado superior e possuidor de mais poder, sobre a fêmea, considerada inferior e sendo oprimida de muitas formas. Essa desigualdade é produto histórico do patriarcalismo, da divisão sexual do trabalho, do machismo e da dominação masculina, existente há séculos de maneira generalizada em praticamente todas as sociedades. Além das mulheres, pessoas homo e transexuais, sofrem opressão e são frequentemente alvos de violência física e simbólica.

O termo “ideologia de gênero”, criado por grupos fundamentalistas, desqualifica o debate sobre a condição da mulher e de coletivos LGBT, pois afirma-se que os professores iriam ensinar que "ninguém nasce mulher, torna-se" (frase retirada do livro “o segundo sexo”, da Simone de Beauvoir), isto é, que "os estudantes deverão construir a sua própria identidade ao longo da vida", e "gênero seria uma construção pessoal que cada um deveria inventar como quiser". (Informações constam em uma Cartilha contra a “ideologia de gênero”, um arquivo em .pdf que tem circulado por espaços conservadores na internet).

Há, portanto, uma completa deturpação dos conceitos e um desconhecimento das teorias sobre desigualdade de gênero, fazendo-se uma verdadeira confusão dos termos, pois, como definimos acima, gênero é uma construção social e impositiva, e não pessoal e “inventada”. Os projetos conservadores definem de forma equivocada o conceito de gênero e ameaçam a laicidade do Estado ao proporem um currículo que nega a diversidade e não problematiza as desigualdades (como se essas fossem naturais), e ainda, rompem com a ideia de que os indivíduos merecem igual respeito e têm igual valor na sociedade.

Trata-se de uma visão equivocada também da educação escolar: a de que a sala de aula seria uma prisão na qual alunos completamente inocentes estariam passivos e indefesos frente ao poder do professor de impor a sua visão de mundo, onde somente este teria sua liberdade de pensamento e expressão garantida, e os alunos deveriam aderir ao pensamento do professor sem questionar. Essa ideia entra em contradição com toda a produção acadêmica na área da educação, em que se afirma que o aluno não é uma folha em branco na qual o professor pode imprimir o que bem lhe convém e que o conhecimento escolar é produzido no diálogo e na troca de experiências e conhecimentos entre professores e alunos, e não “de cima para baixo” sem discussão.

Ao utilizarem palavras como “perigo”, “deformar” crianças, “destruir” famílias, esses setores produzem a campanha do medo e do terrorismo. Por meio da ignorância, do autoritarismo, do fascismo, da difamação desumana e da criação de “inimigos”, baseando-se pura e simplesmente na desinformação, no fanatismo religioso que deixa as pessoas cegas, vão gerar e disseminar preconceito e ódio. Não querem debater, apenas censurar. Como negam o conhecimento, se recusam a ouvir, pensar, refletir, investigar, dialogar e tentar compreender. Dividem o mundo entre os normais e os doentes, reforçando estereótipos. Negam o diálogo e têm medo da liberdade.

Ao contrário do que os conservadores pretendem divulgar, é preciso compreender que gênero não é uma ideologia, mas sim, uma realidade de desigualdade, que esses grupos preferem desconhecer. As relações desiguais entre homens e mulheres são um fato concreto, e não uma ideia abstrata ou uma ideologia. Afirmar que existe uma natureza biológica de dois sexos – a verdade - e que existe uma falsa interpretação relativa à construção social e cultural imposta aos gêneros – a ideologia - é incorreto. Existem diferenças biológicas, é claro, mas também, diferenças culturais que tornam-se imposições comportamentais, tirando a liberdade das pessoas que desejam viver sem essas marcações de gênero. Assim, é uma mentira dizer que a discussão de gênero na educação parte de uma “ideologia” que quer determinar o que os jovens serão.

O currículo escolar tem sido marcado pelo sexismo, pela heteronormatividade e transfobia. A educação tradicional investe no reforço do binarismo de gênero – demarcando incisivamente a oposição entre masculino e feminino e a sua hierarquia – além da ênfase na heterossexualidade – a fim de garantir uma única identidade sexual legitimada. Estigmatiza-se pessoas com orientações sexuais deferentes da norma estabelecida. A escola tem reforçado a invisibilidade de determinados grupos. Porém, impedir o acesso de alunas e alunos às teorias e pesquisas contemporâneas sobre gênero e orientação sexual constitui ato de censura ao acesso a informações de validade científica importante.

Usar o termo “ideologia de gênero” para designar qualquer discussão de gênero e orientação sexual serve para acusar os professores de autoritarismo e de imposição de uma ideia incorreta. É logicamente impossível que tenhamos como objetivo em sala de aula obrigar jovens a serem de uma forma, ou de outra. Isso seria um assalto à sua autonomia, ao contrário, queremos educar para a liberdade, para a ampliação do conhecimento e da reflexão crítica. Nós, educadores não negamos discutir a realidade social dos alunos, que é permeada também pelas relações de gênero e sexualidade.

A importância da educação para a igualdade e a diversidade permite orientar a atuação de professores e alunos, de forma que diminua o sofrimento das pessoas que vêem o valor das suas vidas reduzido – meninas que estão sujeitas a estupro e abuso, meninas e meninos agredidos em razão de sua orientação sexual, identidade de gênero ou dos arranjos familiares de que fazem parte. A interação na escola entre os profissionais da educação e os estudantes pode formar jovens agentes na construção de relações mais respeitosas, de uma sociedade mais igualitária. Trabalhar esses temas poderá contribuir para prevenir a violência contra mulheres, gravidez indesejada, HIV/DST entre os jovens, desconstruir estereótipos, conscientizar sobre identidade de gênero, diversidade sexual no âmbito dos direitos humanos. Lutar contra o machismo, a homo e a transfobia, o bullying, e pela igualdade. Em suma, a construir uma escola em que as diferenças sejam reconhecidas e valorizadas.

.......................................................................................................................................................

¹ Conheça as 11 bancadas mais poderosas da Câmara. 19/02/2016. Em:

<http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/conheca-as-11-bancadas-mais-poderosas-da-camara/>

________________________________________________________________________________________

REFERÊNCIAS

Aquino, Renata. O que se fala quando se fala sobre “ideologia de gênero”. 17/08/2015.Em: <https://contraoescolasempartidoblog.wordpress.com/2016/06/03/o-que-se-fala-quando-se-fala-sobre-ideologia-de-genero/>

Entrevista com Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Clima de caça às bruxas contra ideias de esquerda é muito preocupante, alerta sociólogo. 11/04/2016. Em: <http://www.sul21.com.br/jornal/clima-de-caca-as-bruxas-contra-ideias-de-esquerda-e-muito-preocupante-alerta-sociologo/>

Penna, Fernando. O ódio aos professores. 18/09/2015. Em:

<https://liberdadeparaensinar.wordpress.com/2015/09/18/o-odio-aos-professores/>

Zinet, Caio. Projeto de lei prevê prisão de docente que falar sobre “ideologia de gênero.” 09/11/2015. Em: <http://educacaointegral.org.br/noticias/projeto-de-lei-preve-prisao-de-docente-que-falar-sobre-ideologia-de-genero/>

Melo, Demian. “Escola sem partido” ou escola com “partido único”? 13/10/2015. Em: <http://blogjunho.com.br/escola-sem-partido-ou-escola-com-partido-unico/>

Goulart, Marcos. O medo da “Doutrinação Ideológica” ou o alarmismo do neomacartismo tupiniquim. 05/06/2015. Em: <https://filosofiaeensino.wordpress.com/2015/06/05/o-medo-da-doutrinacao-ideologica-ou-o-alarmismo-do-neomacartismo-tupiniquim/>

Furlani, Jimena. Ideologia de gênero? Explicando as confusões teóricas presentes na cartilha. Versão revisada 2016. Florianópolis: FAED, UDESC, Laboratório de Estudos de Gênero e Família. 9 pp., 2016. Disponível em <https://www.facebook.com/jimena.furlani>


Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Nenhum tag.
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page