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“Cultura do estupro” e machismo: reflexões sobre o documentário Filha da Índia¹


Direção: Leslee Udwin, Música: Krsna, Roteiro: Leslee Udwin, Edição: Anuradha Singh, Elenco: Badri Singh, Mukesh Singh, Jyoti's Mother Asha Devi. Índia e Reino Unido, 2015.

Filha da Índia é um documentário que aborda o tema da violência sexual contra as mulheres, a partir de um caso ocorrido na Índia em 2012. O tema é importante, atual e merece atenção e discussão, devido ao grande número de episódios desse tipo de violência, conhecida como a ‘cultura do estupro’², em diversos países do mundo e no Brasil. Segundo números do governo indiano, uma mulher é estuprada na Índia a cada 20 segundos. No Brasil, há um caso a cada 11 minutos³.

O enredo se passa em torno da estudante de medicina de 23 anos, Jyoiti Singh, que voltava para casa, vindo do cinema com seu amigo, em 16 de dezembro de 2012. Eles entraram em um ônibus e, enquanto este rodava pelas rodovias, seu amigo foi espancado e ela foi brutalmente estuprada por seis homens. Jyoiti não resistiu aos ferimentos e faleceu alguns dias depois.

A diretora do documentário, Leslee Udwin, tem 59 anos, é cineasta, atriz e produtora britânica. Ela nasceu em Savyon, Israel, em uma família judia, mas passou a sua vida em Londres. Suas produções mais conhecidas são os filmes East is East (1999), Mrs Ratcliffe’s Revolution (2007), West is West (2010), e o documentário Filha da Índia (2015).

A “Plan International Brasil”, organização humanitária internacional pelos direitos da criança e do adolescente, trouxe ao nosso país o documentário como parte das ações da iniciativa “#QuantoCusta?” e da campanha “#PorSerMenina”:

A campanha “Quanto Custa a Violência Sexual contra as Meninas?” pretende promover e qualificar o debate sobre a violência sexual contra as meninas que já chega a mais de meio milhão de casos por ano no Brasil. Para isso, além de peças de comunicação e ações em mídias sociais, contará com uma rede de organizações de todos os setores na realização de iniciativas pelo Brasil, desde a exibição do filme India’s Daughter e debates sobre a violência sexual contra meninas, passando pela elaboração de materiais informativos sobre a identificação de abuso e violência sexual, como denunciar estes crimes e procurar a rede de atendimento para meninas que sofreram com este crime 4.

De acordo com a entrevista para o Brasil Post 5, desde que seu filme foi lançado, a diretora se tornou consultora da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) para um projeto global de educação que promove a igualdade de gênero e direitos femininos (Equality Studies Global Initiative). Udwin afirma que se comprometeu com a dificuldade e as angústias em fazer o filme não apenas pelo horror desse caso de violação, mas pelo otimismo causado devido aos acontecimentos que se seguiram. Homens e mulheres comuns da Índia, em números sem precedentes, foram as ruas e resistiram à violência policial, para fazer valer suas vozes. As manifestações tornaram-se uma especie de ‘primavera árabe para a igualdade de gênero’, e nesse sentido, este filme torna-se uma ferramenta poderosa eficaz e transformadora, pois nos faz despertar para a necessidade de mudança.

O caso narrado no documentário iniciou uma onda de protestos e revoltas em várias regiões indianas. Os alunos da universidade onde Jyoiti estudava, assim que ficaram sabendo do ocorrido, saíram às ruas para protestar. Ela era um símbolo de aspiração, uma menina que estudava, que tinha planos de tornar-se independente. A sociedade ficou chocada com o crime tão desmedido e cruel. As manifestações reivindicavam liberdade, justiça, e a não tolerância ao estupro. Os protestos foram aumentando e aconteceram em várias cidades além de Delhi, como em Calcutá, Bangalore, Mumbai e não se restringiram ao caso de Jyoiti apenas, mas a todas as mulheres que sofrem com a ‘cultura do estupro’. Houve uma revolta generalizada de todas pela garantia da liberdade de ir e vir com segurança. O caso de Jyoiti foi o estopim devido ao acúmulo de fatos desse tipo que não eram reportados até então, e acabaram explodindo. A dor das mulheres foi o que as uniu em solidariedade e na luta pelos seus direitos. A sociedade civil se mostrou esperançosa com a transformação.

Os crescentes protestos forçaram o governo a criar uma comissão judicial especial para ouvir todas as opiniões sobre como o problema do estupro poderia ser tratado. A definição de violência sexual precisava ser ampliada, as palavras ‘modéstia’ e ‘vergonha’ deveriam ser removidas do Código Penal. “Foi a 1ª vez que jovens saíam para protestar sem um líder, sem serem chamados por partidos políticos”, afirma Leila Seth, ex-juíza e membro do comitê de revisão de estupros, o ‘Comitê Verma’, criado devido à demanda da sociedade, após o crime.

Para uma parte da sociedade indiana, uma mulher só pode sair de noite se estiver acompanhada do marido, ou de parentes homens, como irmão, pai, avô. Depoimentos nesse sentido são relatados pela produção, como o do advogado de defesa dos estupradores, M. L. Sharma:

Uma fêmea é como uma flor, é bonita, atraente, muito suave, agradável. Mas por outro lado, o homem é como um espinho, forte, muito resistente. Esta flor sempre precisa de proteção. Se colocar essa flor numa sarjeta ela se deteriorará, se a colocar em um templo, ela será adorada. Aquela garota estava com um rapaz desconhecido que a levou em um encontro. Em nossa sociedade nunca permitimos que nossas garotas saiam de casa a noite com uma pessoa desconhecida. Ela não deveria estar nas ruas como se fosse comida. Não há lugar para amizade entre homem e mulher em nossa sociedade. Basta ser mulher para que ele, imediatamente, pense em sexo. Temos a melhor cultura. Em nossa cultura não há lugar para uma mulher.

A documentarista teve acesso a alguns dos estupradores que aguardavam a sentença final do crime na prisão Tihar, em Delhi. Mukesh, 28 anos, condenado por estupro e assassinato, e sentenciado a morte por enforcamento não demonstra vergonha, medo, ou qualquer tipo de arrependimento em seu depoimento. Ele afirma:

Uma garota decente não sairia às 21 horas da noite. Uma garota é muito mais responsável por um estupro que um rapaz. Meninos e meninas não são iguais. Trabalho doméstico e limpeza são para as garotas. Elas não devem andar em bares e boates a noite, fazendo coisas erradas, vestindo roupas erradas.

Diante do fato de violência ocorrido, a população ficou dividida quanto à pena a ser cumprida pelos estupradores. Houve autoridades e intelectuais com posições mais liberais, contrários ao uso da violência e da vingança, mas alguns manifestantes pediram a pena de morte e o enforcamento dos criminosos. Devido à insistência da opinião pública pela pena extrema, houve condenação à morte.

Leila Seth sustenta que a diminuição, e até mesmo a erradicação dos casos de estupro, depende da mudança de mentalidade da sociedade. Essa mudança é difícil devido ao fato de que

os homens sentem que possuem domínio sobre as mulheres e ainda há uma histórica tradição do patriarcado que ao longo dos anos tem sido incorporada em homens e mulheres. A única maneira de você mudar as coisas é a educação. Porque a educação possibilita o desenvolvimento da auto-importância, da auto-estima das meninas. E também ensina aos rapazes o valor das mulheres.

Nesse sentido, Gopal Subramanium, advogado sênior da Suprema Corte e co-autor do ‘Comitê Verma’, assegura que “ninguém é um monstro quando é excluído da sociedade. Afinal, qualquer sociedade que tenha esses estupradores precisa assumir sua responsabilidade por eles.” Isto é, muitos crescem pensando que uma mulher é menos importante que um menino. Sendo assim, ela está sujeita a sofrer, não somente violência simbólica, mas também violência física e sexual.

A reflexão de Satendra, tutor e amigo de Jyoiti, é relevante: “se um monstro é removido, a sociedade irá mudar? Não. As pessoas dessa sociedade e sua mentalidade é que precisam mudar”. A ênfase desses depoimentos está na importância de desenvolver uma cultura baseada nos direitos humanos, na liberdade, na igualdade, em construir uma base de pensamento e educação cidadã, que combata as opressões de classe, gênero, etnia, sexualidade.

O trabalho da cineasta Udwin trás uma discussão contemporânea importante sobre a violência de gênero que tem sua origem na antiga sociedade patriarcal. Porém, mesmo que todos os depoimentos sejam relevantes, a produção exagera um pouco na exibição dos depoimentos dos pais da vítima, que são extensos e muito pesados e tristes. Os testemunhos dos pais poderiam ser menos explorados e a sua imagem poderia ter sido mais preservada, sem detalhar tanto o sofrimento, pois é óbvio que ele existe e vai permanecer. Nas cenas, eles choram, lamentam a morte da filha (o que é natural), mas isso acaba esbarrando em um certo sensacionalismo e os deixando muito expostos.

O documentário é inovador, pois, se por um lado mostra o horror do caso e a exposição de falas que reproduzem e reforçam a cultura machista e a dominação masculina, que é assustadora, por outro lado, trás uma mensagem positiva de esperança por meio das imagens das mobilizações e das declarações em prol da igualdade de gênero, que nos fazem acreditar no papel da educação e do diálogo. Udwin faz isso de maneira impactante. Não são somente com números e dados quantitativos. São histórias e depoimentos sobre um fato de violência sexual. Que nos fazem refletir sobre outros tantos fatos, ainda comuns em diversos países, e não somente na Índia. Mexe com a gente de maneira que não há como não se mobilizar e ficar indiferente às reivindicações feministas.

 

Notas:

¹ Direção: Leslee Udwin, Música: Krsna, Roteiro: Leslee Udwin, Edição: Anuradha Singh, Elenco: Badri Singh, Mukesh Singh, Jyoti's Mother Asha Devi. Índia e Reino Unido, 2015.

² Em uma sociedade onde se vigora a ‘cultura do estupro’ ou a ‘lógica do estupro’, a violência sexual torna-se algo usual. A culpabilização da vítima, a sexualização da mulher como objeto e a banalização da violência contra a mulher fazem com que esses fatos sejam considerados normalizados. É uma lógica autoritária que desresponsabiliza quem detém o poder.

³ Segundo o 9º anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2014.

4 Entrevista para o Brasil Post disponível em: http://www.brasilpost.com.br/2015/09/23/leslee-udwin-filha-india_n_8177348.html

5 Plan International Brasil: https://plan.org.br/news/quanto-custa-a-violencia

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